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Foto divulgação e colaboração de Geraldo Frencken |
QUANDO SE FALA SOBRE A PRESENÇA NEGRA NA AMAZÔNIA
É FREQUENTE VER O ESPANTO DAS PESSOAS.
AINDA HOJE, ESPECIALMENTE FORA DA REGIÃO,
É COMUM OUVIR A PERGUNTA:
“MAS, AFINAL, EXISTIU ESCRAVIDÃO NA AMAZÔNIA?”
Podemos começar respondendo que a experiência da
escravidão africana também marcou a trajetória da parte norte da colônia
portuguesa na América. Em decorrência disso, hoje a presença negra na Amazônia
é inegável, com enorme impacto na vida da região, marcando sua história, suas
formas de comer, vestir, amar, dançar, cantar, rezar, trabalhar, juntamente com
todas aquelas heranças intangíveis que as pessoas levam na pele, nos olhos e na
alma.
São inúmeros os sinais dessa presença. Existem hoje
406 comunidades quilombolas nos estados do Amapá, Amazonas, Maranhão e Pará. Os
dados são da Fundação Cultural Palmares, entidade do governo federal
responsável pela certificação dessas comunidades, etapa necessária para o
reconhecimento de suas garantias constitucionais e, especialmente, o direito às
terras em que vivem. Em todo o Brasil, são cerca de 2 mil comunidades já
certificadas.
Agora, pergunta-se: se a presença negra na Amazônia
é tão relevante, por que sabemos tão pouco sobre ela? Para começar, é preciso
lembrar que, durante muito tempo, boa parte da historiografia partiu do
princípio de que a escravidão não teve grande importância na região, já que ali
se costumava usar o trabalho indígena em maior escala que o africano.
Inclusive, havia certo consenso de que estudar a presença africana no Brasil
era relevante apenas nos lugares onde existia grande número de escravos.
Basicamente, isso significava falar das regiões Sudeste e Nordeste do País.
Durante anos, esses argumentos foram usados para
justificar a falta de aprofundamento da pesquisa sobre a presença negra na
Amazônia. O resultado disso repercutiu fundo na produção historiográfica sobre
o tema e alcançou os livros didáticos. Afinal, quanto menos se pesquisava sobre
o assunto, mais difícil era falar sobre ele.
Desde o fim da década de 1980, esse cenário vem
sendo revertido em razão da notável expansão dos estudos sobre a escravidão
africana e as experiências de trabalhadores cativos e libertos, ancorados em
sólida pesquisa documental, novas temáticas e métodos.
O mergulho nesse universo vem revelando outras
histórias sobre a vida dos africanos Brasil afora. Tais resultados ajudam a
fortalecer as lutas contemporâneas dos movimentos sociais de negritude porque
iluminam trajetórias de indivíduos e comunidades, colaboram nos processos de
reconhecimento de terras quilombolas e fundamentam reivindicações de políticas
de ação afirmativa e combate ao racismo.
Hoje, as pesquisas revelam um Brasil muito mais
diverso do ponto de vista étnico-racial do que se pensava no passado. Os
estudos fazem isso trazendo outros personagens para a cena, entre eles, homens
e mulheres de origem africana, escravizados ou não, que viveram na Amazônia.
ENEGRECENDO A FLORESTA
Estudos recentes indicam que a Amazônia foi
conectada às redes do tráfico atlântico ainda no fim do século XVII e, até
meados de 1750, estima-se a entrada de cerca de mil indivíduos na região,
provenientes, em especial, da Costa da Mina, área tradicional de comércio
negreiro na África.
O tráfico era feito com forte comprometimento da
coroa portuguesa e, considerando que o Grão-Pará e o Maranhão não eram uma de
suas rotas mais rentáveis, havia certa irregularidade nos desembarques até a
segunda metade do século XVIII, quando foi criada a Companhia Geral de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão.
A partir daí, coube à nova empresa a tarefa de
ampliar a oferta de escravos para os proprietários da região, em especial
porque a coroa portuguesa resolveu, no mesmo período, abolir a escravidão dos
índios (1755) que eram trazidos dos altos cursos dos rios amazônicos para
servir nas propriedades no Pará e no Maranhão. Os índios eram trabalhadores
indispensáveis e o fim de sua escravidão, somado à presença dos escravos, não
representou uma redução dessa importância. Eles continuaram a ser empregados em
diversas formas de trabalho compulsório e, inclusive, compartilharam muitas
dessas experiências com os escravos negros.
Enquanto a Companhia esteve em funcionamento
(1755-1778), estima-se que tenha comercializado perto de 25 mil escravos na
imensa área que hoje conhecemos como Maranhão, Pará, Amazonas e Mato Grosso.
Até meados do século XIX, seguindo os novos fluxos do tráfico internacional, as
populações desembarcadas na Amazônia serão procedentes, em sua maioria, da
África Central Atlântica.
Assim, no século XIX já era bastante evidente a
presença da população escrava africana nas vastidões amazônicas, trabalhando
com os índios nas lavouras de café, tabaco, cana-de-açúcar, na coleta de
produtos da floresta, nas canoas do comércio e também nos diversos núcleos
urbanos existentes floresta adentro. Como disse o historiador Flávio dos Santos
Gomes, há muito tempo a floresta já estava enegrecida.
Que tipo de atividades realizavam os escravos?
Circulando pelas ruas de Belém e Manaus estavam carregadores africanos,
vendedoras de açaí, mucamas e criados, forros negociando suas produções de
tabaco, artigos de latão e cobre, oferecendo seus serviços de sapateiro,
carpinteiro e ourives, divertindo-se nas festas do Espírito Santo, de Nossa
Senhora de Nazaré ou, ainda, como membros da Irmandade do Rosário.
Escravos foram empregados na construção de
fortalezas, condução de embarcações para Mato Grosso, nas fazendas de cana,
arroz, tabaco, mandioca, milho, na criação de gado e de cavalos na Ilha de
Marajó. Também eram artesãos, tecelões de chapéus e redes de algodão,
apanhadores de açaí, pescadores, trabalhadores do porto, dos arsenais de guerra
e da Marinha, das obras públicas, calafates, carpinteiros, pedreiros,
ferreiros, vendedores de tabaco, garapa e frutas. Também estavam nas casas
senhoriais servindo, ninando, zelando, cozinhando, lavando e costurando.
Estavam em todos os lugares dividindo espaços com os trabalhadores índios, o
que tornava essas cidades diferentes das outras.
No século XIX, Manaus e Belém surpreendiam os
viajantes estrangeiros que por ali passavam. Suas belezas naturais eram
atrativos inquestionáveis, mas a diversidade étnico-racial de suas populações
era o tema recorrente nos relatos. Os dados mostram que existia, ao lado de uma
grande maioria de índios vivendo nas cidades, dos escravos africanos e dos chamados
brancos, uma grande variedade de tipos mestiços que tornava a Amazônia um
laboratório extraordinário para estudo dos efeitos das “misturas raciais”.
Mas outros laços ligavam as histórias de índios e
africanos relacionados com suas experiências de solidariedade construídas a
partir do duro cotidiano que muitas vezes compartilharam. As tentativas de
constituir novos espaços fora da escravidão levaram à formação de muitos
quilombos/mocambos que, eventualmente, reuniram índios e africanos no mesmo
espaço. As fugas também foram frequentes e, em vários casos, épicas, porque
atravessavam amplos espaços do território amazônico.
Escravos lançaram mão de muitas estratégias para
sobreviver em um mundo adverso e se esforçaram para manter, no limite de suas
possibilidades, o controle de suas vidas. Buscaram juntar dinheiro para
alcançar alforria, formaram comunidades independentes, guardaram segredos no
fundo da alma e transmitiram a seus descendentes.
Mas a presença negra não se reduziu à escravidão.
Outros homens e mulheres viveram na região sendo professores de música, chefes
de polícia, capoeiras, gráficos, lavadeiras, oleiros, carpinteiros – uma lista
sem fim. Apesar de o silêncio sobre essas histórias notáveis ainda ser
persistente, não há como negar que está sendo revertido pela força
inquebrantável de todas essas experiências históricas.
*Professora
do Departamento de História da Ufam e pesquisadora do CNPq.
===== ===== =====
Livros
O Negro no Pará, Vicente Salles. Brasília: MEC; Belém: Secult, 1988. Disponível em http://bit.ly/1CKXPRy
A Hidra e os Pântanos: Quilombos e mocambos no Brasil (séculos XVIII – XIX), Flávio dos Santos Gomes. São Paulo: Unesp, 2005
A Escravidão Negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX), José Maia Bezerra Neto. Belém: Paka-Tatu, 2012
O Fim do Silêncio: Presença negra na Amazônia, Patrícia Maria Melo Sampaio (org.), Belém: Açaí/CNPq, 2011
Sites
Comunidades Quilombolas no Pará http://bit.ly/1vVnUOT
Nova Cartografia Social da Amazônia http://bit.ly/10dItsY
O Negro no Pará, Vicente Salles. Brasília: MEC; Belém: Secult, 1988. Disponível em http://bit.ly/1CKXPRy
A Hidra e os Pântanos: Quilombos e mocambos no Brasil (séculos XVIII – XIX), Flávio dos Santos Gomes. São Paulo: Unesp, 2005
A Escravidão Negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX), José Maia Bezerra Neto. Belém: Paka-Tatu, 2012
O Fim do Silêncio: Presença negra na Amazônia, Patrícia Maria Melo Sampaio (org.), Belém: Açaí/CNPq, 2011
Sites
Comunidades Quilombolas no Pará http://bit.ly/1vVnUOT
Nova Cartografia Social da Amazônia http://bit.ly/10dItsY
Colaboração e pesquisa de artigo de Geraldo Frencken
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